segunda-feira, 27 de julho de 2020

FELICIDADE CLANDESTINA


 Era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “Eladata natalícia” e “saudade”.
Mas que talento tigno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser. ”Entendem? Valia mais do que me dar o livro: pelo tempo que eu quisesse ” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.


segunda-feira, 20 de julho de 2020

Texto Ensino Médio: O perigo das notícias falsas


 O  movimento antivacina (anti-vax) é a prova do perigo que o compartilhamento de fake news representa para a sociedade. Neste ano, a Organização Mundial de Saúde (OMS) incluiu o conteúdo antivacina que circula nas redes sociais como um dos 10 maiores riscos à saúde global.
A justificativa da OMS é de que não tomar vacinas é tão perigoso quanto os vírus que estão presentes na lista de riscos, já que quanto mais pessoas aderirem ao movimento, maiores as chances de acabar com o progresso no combate de doenças, inclusive algumas que tinham sido erradicadas, como o sarampo e a poliomielite

“A vacinação é uma das formas mais eficientes, em termos de custo, para evitar doenças. Ela atualmente evita de 2 a 3 milhões de mortes por ano, e outro 1,5 milhão poderia ser evitado se a cobertura vacinal fosse melhorada no mundo”. (Declaração da OMS publicada pela Sociedade Brasileira de Medicina Tropical - SBMT)
Fake News             

O que chama a atenção no retorno e na multiplicação de algumas doenças até então combatidas pelas vacinas é a sua proliferação em países mais desenvolvidos, ao contrário de outras endemias. Nos Estados Unidos e em países da Europa, por exemplo, são as classes mais altas que predominam entre os seguidores do antivax. A Ucrânia é a nação com maior número de casos de sarampo (superando 53 mil casos em 2019), sendo mais de 100 mil infectados desde 2017. 

Veja também: o que são fake news?
Grande parte da imunização fundamental ocorre ainda na infância, mas muitos país têm buscado se informar sobre as vacinas e medicamentos em grupos do Facebook e outras redes sociais. Com a proliferação de conteúdo falso, muitas vezes fundamentado e justificado por pessoas que se dizem profissionais, as Fake News são comumente adotadas como “verdade absoluta”, desconsiderando-se o que a ciência diz. 
Os antivaxxers, como são chamados, usam alegações falsas como “vacina causa autismo” e até motivos religiosos para justificarem a ausência de vacinação. A Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT) cita, inclusive, uma pesquisa da revista Vacine sobre o assunto, estudo que constatou que alguns grupos presentes na internet propagam que doenças como a poliomielite não existem. 
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Retrocesso na Saúde Pública
A propagação do movimento antivacina é preocupante. O Brasil, país que é exemplo em imunização, já sofre com a volta de doenças que haviam sido erradicadas, como é o caso do Sarampo. São Paulo é o principal estado brasileiro com surto da doença, resultado do vírus altamente contagioso trazido por pessoas que estiveram na Europa e na Ásia. Pará, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Amazonas, Santa Catarina e Roraima também têm registros de pessoas com sarampo, mas em menor quantidade. 
Se em território pequeno o compartilhamento de ideias equivocadas sobre as vacinas resulta em fuga da imunização, um país com proporções continentais como o Brasil e que ainda encontra dificuldade de acesso à saúde pública em alguns municípios pode ter um retrocesso muito grande na erradicação de doenças. 
Segundo o Programa Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde (PNI/MS), a meta de vacinar 95% da população-alvo nos últimos dois anos não foi alcançada. No caso da tetra-viral, responsável pela prevenção contra o sarampo, caxumbarubéola e varicela (catapora), a vacinação foi a menor registrada: 70,69% em 2017.

Onde buscar informações?
Propagar Fake News coloca o bem-estar coletivo em risco, afetando inclusive a saúde pública. Por isso, cheque a origem de qualquer dado quando pensar em compartilhar algo que receber pelas redes sociais ou aplicativos de mensagem instantânea. 
Dúvidas sobre os diferentes tipos de vacinas são esclarecidas facilmente em páginas oficiais como o da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT), do Ministério da Saúde (acesse aqui), e da Sociedade Brasileira de Imunizações (acesse aqui). Os sites trazem, inclusive, os calendários de vacina para cada faixa etária e especificam a função de cada programa de imunização.
Fonte:https://vestibular.brasilescola.uol.com.br/blog/os-perigos-movimento-antivacina.htm

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segunda-feira, 13 de julho de 2020

UM CONTO ATUAL



Era uma vez um rei que gostava tanto de roupas novas, que empregava em se vestir todo o dinheiro que tinha.
Se passava revista aos seus soldados, se aparecia nos espetáculos ou passeios públicos, não tinha outro fim em vista que não fosse mostrar como ia vestido. Era uma roupa para cada hora do dia; de maneira que assim como é costume dizer-se de qualquer rei: “Sua majestade está em conselho de ministros”, a respeito deste dizia-se: “Sua majestade está no seu guarda-roupa”.

A capital em que ele vivia, era uma cidade alegre, principalmente pelo grande número de estrangeiros que ali concorriam. Um dia chegaram aquela cidade dois impostores que se anunciaram como tecelões, dizendo que sabiam tecer um pano como nunca se vira. Era um estofo notável, não só pela beleza das cores e do desenho, mas sobretudo porque tinha a maravilhosa qualidade de se tornar invisível para quem não exercesse, como devia, o seu emprego, ou fosse demasiadamente estúpido.

— Uma roupa desse pano deve ser impagável— disse consigo o rei;— por meio dela chegarei a conhecer quais são os homens incapazes do meu reino, e poderei distinguir os inteligentes dos estúpidos. Um traje assim é uma coisa indispensável. — Em seguida mandou adiantar aos homens muito dinheiro para poderem desde logo dar começo à obra.
Os aventureiros armaram efetivamente dois teares e puseram-se a fingir que trabalhavam, embora nas lançadeiras não houvesse nem sombra de fiado. A cada passo estavam a pedir seda da mais fina e ouro do melhor quilate, que iam ensacando, sem todavia deixarem de trabalhar nos teares vazios até alta noite.

Passado algum tempo, lembrou-se o rei de sair para ver em que altura ia o artefato. Sentiu-se porém seriamente embaraçado, quando se recordou de que o estofo não podia ser visto por quem fosse tolo ou não exercesse condignamente o seu mister. Não era porque duvidasse de si; em todo o caso julgou prudente, pelo sim, pelo não, mandar adiante alguém que examinasse o estofo. Toda a cidade sabia da qualidade maravilhosa que ele tinha; cada um estava ansioso por saber se o seu vizinho era idiota ou inábil.

— Vou mandar o meu velho e honrado ministro,— disse consigo o rei. — Ninguém, como ele, para avaliar a obra, porque além de ser um homem fino, é irrepreensível no desempenho das suas funções.

O ministro entrou na sala onde trabalhavam os dois impostores, e arregalando muito os olhos, disse de si para si: — Meu Deus, não vejo nada! — Mas, nem palavra. Os dois tecelões pediram-lhe que se aproximasse, e perguntaram que tal achava o desenho, e se as cores eram ou não magníficas. Ao mesmo tempo apontavam-lhe para os teares, onde o velho ministro tinha os olhos pregados, mas onde não via nada, pela simples razão de não haver lá nada que ver.

— Pois na realidade, serei eu também um asno?— perguntava ele a si mesmo. — É preciso que ninguém o suspeite. Serei eu incapaz de exercer o meu cargo? Não! não darei a saber a ninguém que não vi o tecido.

— Então, que dizeis?— perguntou um dos tecelões.

— Admirável, é uma coisa surpreendente! — respondeu o ministro, pondo os óculos. — Este desenho, estas cores... vou imediatamente participar ao rei que fiquei satisfeitíssimo.

— Isso é uma grande honra para nós,— disseram os dois tecelões, e começaram a chamar-lhe a atenção sobre as cores e desenhos imaginários, aos quais eles tinham o cuidado de ir dando um nome. O ministro ouviu atentamente, para repetir diante do rei tudo quanto eles diziam.

Alguns dias depois o rei mandou outro funcionário honesto examinar o estofo e ver se estava pronto. Aconteceu a este o que tinha acontecido já ao ministro: por mais que olhasse, não via nada.

— Não é verdade que isto é um tecido admirável?— perguntavam os dois impostores, e iam mostrando as cores e desenhos que não existiam.

— Pois eu não sou tolo! — pensava o homem. — Dar-se-á o caso que eu não seja digno de exercer o meu emprego? Isso é singular; mas eu farei por o não perder. — E em seguida elogiou muito o tecido, e louvou sobretudo a escolha das cores e do desenho. Foi dizer ao rei que o estofo era magnífico, e daí a pouco não havia ninguém que não falasse nele.

Por último quis o rei ir vê-lo pessoalmente, enquanto estava ainda no tear, e acompanhado de um grande séquito de pessoas escolhidas, entre as quais se encontravam os dois funcionários honestos, dirigiu-se ao lugar onde os dois trapaceiros continuavam a trabalhar com todo o cuidado, mas sem fio de seda ou de ouro, nem espécie de fiado algum.

— Então não é excelente?— perguntaram os dois ministros. — O desenho e as cores são dignas de vossa majestade. — E apontavam para os teares vazios, como se os outros pudessem ver aí alguma coisa.

— Que é isto?— disse consigo o rei— eu não vejo nada. Acaso serei eu imbecil?! Não serei digno de ser rei? Esta é a maior infelicidade que me podia acontecer. — Depois exclamou de repente: — Magnífico! Declaro-me completamente satisfeito.

Abanou a cabeça em sinal de aprovação, e contemplou o tear sem se atrever a dizer a verdade. Todos os do séquito contemplaram também, sem contudo nada verem, e disseram com o rei: — É magnífico! — Depois aconselharam-no que estreasse a roupa nova numa procissão que devia sair daí a pouco. — É magnífico! admirável! excelente! — diziam todos à uma; e a alegria era indescritível.

Os dois impostores foram condecorados, e receberam o título de tecelões da casa real. Na véspera da procissão trabalharão toda a noite à luz de dezesseis velas.

Afinal fingiram tirar a peça do tear; cortaram, no ar, com grandes tesouras; coseram com agulhas desenfiadas, e depois de tudo isto disseram que estava pronta a roupa.

Veio o rei em pessoa, acompanhado dos seus ajudantes de campo, e os dois trapaceiros com os braços levantados como se segurassem alguma coisa, disseram: — Aqui tem vossa majestade a calça, a casaca e o manto. Tudo isto é leve como uma teia de aranha. Há de parecer a vossa majestade que não traz nada sobre o corpo, mas é justamente nisto que está a principal qualidade do tecido.

— É verdade,— responderam os ajudantes de campo, mas sem verem nada.

Em seguida os tecelões pediram ao rei que se colocasse diante de um espelho, a fim de lhe provarem a roupa, e depois de o despirem todo, fingiram que lhe vestiam uma por uma as diferentes peças. O rei ia-se mirando e remirando ao espelho.

— Que bem lhe fica! que bem talhado! — exclamavam todos os cortesãos. — Que desenhos! E as cores? É uma roupa preciosa!

— Está lá fora o palio, debaixo do qual vossa majestade tem de ir na procissão,— disse o mestre de cerimônias.

— Bom, eu estou pronto — respondeu o rei;— penso que assim não vou mal. — E viu-se ainda uma vez ao espelho, para contemplar o esplendor em que ia.

Os caudatários apalparam o chão, como se quisessem levantar a cauda do manto, e caminharam com os braços estendidos como se segurassem alguma coisa, não querendo dar a entender que não viam nada.

Assim caminhava o rei debaixo do magnífico palio, e toda a gente da rua e das janelas exclamava: — Que suntuoso vestido! que bela cauda tem o manto! o feitio é irrepreensível! — Ninguém queria dar a conhecer que não via nada, para não ser taxado de estúpido ou incapaz de exercer o seu emprego. Nunca roupa alguma do rei tinha dado tanto na vista.

— Mas o rei vai nu;— gritou uma criancinha.

— Meu Deus! escutai a voz da inocência— disse o pai.

Imediatamente correu por toda a multidão, que uma criança dissera que o rei ia nu; e afinal exclamaram todos à uma: — O rei vai nu!

Este sentiu-se extremamente mortificado, porque lhe parecia que tinha razão; mas cobrou ânimo e disse consigo: — Seja o que for, é indispensável que eu fique até ao fim. — Depois tomou uns ares ainda mais majestosos, e os caudatários continuaram a segurar, com todo o respeito, a cauda que não existia.

A SERENÍSSIMA REPÚBLICA!

  A Sereníssima República (Conferência do Cônego Vargas) – Conto de Machado de Assis By  admin   |   09/03/2013 0 Comment Meus senhores, Ant...